quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A vida em coloc

Como ja é sabido, Paris tem um dos niveis de aluguel mais caros do sistema solar, juntamente com cidades japonesas e Londres. Aposto que um flat mobiliado nos anéis de Saturno, com vista para Jupiter, é mais barato.
Tudo isso se deve à simples lei da oferta e da procura. Milhares de pessoas procuram um lar, pra pouco apartamento.

E com tanta gente procurando, além dos preços, as exigencias dos proprietarios também sao exorbitantes. Pra alugar um mero studiozinho de 20 metros quadrados mesmo numa area 'legalzinha' tipo porte de clignancourt, você precisa de dois fiadores na europa, que tenham um salario 3 vezes maior que o aluguel, e você mesmo precisa ter um CDI (contrato por tempo indeterminado, ou o equivalente do "carteira assinada" do brasil) por mais de 3 meses, com um salario igualmente três vezes maior que o aluguel...
E mesmo assim, é inacreditavel o quanto as pessoas ainda tem de se matar pra conseguir um muquifinho dentro da périphérique.
Logo, pra estudantes sem CDI e sem fiadores europeus tipo eu, as chances de alugar algo meu beiram à chance do impossivel-nem-a-pau-vai-sonhando-ta-achando-o-quê-da-vida.
A unica coisa que sobra sao as igualmente disputadas colocaçoes.
Uma pessoa, que nao quer morar num studiozinho minusculo, aluga um apê grande, pra dividir com outras pessoas, e todo mundo racha o aluguel. Ou alguém é dono de um apê, e tendo um quarto extra, resolve aluga-lo pra ter uma renda extra. Tudo isso é ilegal, feito por baixo dos panos, mas é o que salva pessoas tipo eu de morar debaixo da ponte ou nos corredores do métro.

E se morar com amigos pode ser complicado, morar com estranhos entao é mais ainda. Mas honestamente, nesses dois anos e meio de vida "em comum" com estranhos, eu nao tenho do que reclamar. Tirando o tiozinho (que eu vou falar logo mais), eu nao tenho do que reclamar dos meus colocatarios, inclusive fiz amigos queridos à partir dai. Ouço tanta historia bizarra sobre colocaçoes, que acho que eu tenho sorte. Mas isso nao nos impede de passar por pequenas situaçoes bizarras ou no minimo engraçadas :

A escova compartilhada : a idéia desse post veio quando hoje de manha eu fui escovar os dentes depois do café da manha e nao achei minha escova azul. Imaginei que minha coloc tinha jogado ela fora por engano, mas nao tinha nada no lixo.
Sabendo que o namorado dela tinha dormido la aquela noite e que agora so haviam duas escovas rosas no copinho, deduzi que o cara, nao sabendo qual era a escova dele, deduziu o obvio "rosa-menina e azul-menino" e usou minha escova. Quando a coloc acordou, perguntei como quem nao quer nada se ela nao sabia da minha escova, ela disse que nao mas começou a olhar nas coisas dela. Eis que ela acha a escova, começa a rir e deduz a mesma coisa que eu : o namorado tinha usado minha escova. Ela pediu novecentas mil desculpas e prometeu comprar uma escova nova hoje mesmo. Na verdade, eu nem estressei, so queria que ele ficasse ciente da nojeira mesmo hahaha. A vida em comum tem disso.

A geladeira multi-étnica : quando morei na chinatown parisiense, dividia o apê com uma africana e uma chinesa. Nossa geladeira era a coisa mais flagrante da nossa diferença cultural. Acho que as unicas coisas em comum entre as nossas prateleiras eram coisas tipo manteiga ou ovos. Lembro que um dia abri a geladeira toda serelepe, e vejo uma cabeça de peixe me olhando na prateleira da africana. Sim, uma cabeça de peixe, com olhinhos, dentinhos e tudo. Ja fiquei achando que minha coloc era uma macumbeira, e ja pensei em encomendar alguns despachos. Mas eis que um dia chego em casa, e ela ta fritando umas bananas-da-terra (que ela adorava e comia dia sim dia nao) e cozinhando a cabeça de peixe com uns temperos, que ELA COMEU DE COLHER, com olhinhos, dentinhos e tudo.
Juro que fiquei com o estomago revirado uns 2 dias. E sem meus despachos.

O tiozinho sem-noçao : no primeiro apê que morei, tinha uma coloc italiana gente-finissima, que virou uma amiga querida. Mas quando ela teve que voltar pra bergamo, a proprietaria do apê (que nao morava la) decidiu que estava "cansada desses jovens" e resolveu colocar um cara de uns 50 anos pra morar no quarto da italiana. O que leva um cara de 50 anos a se submeter a morar em colocaçao e nao ter seu proprio espaço, eu nunca vou saber.
A questao é que o tiozinho era um pé-no-saco. Ele tinha que dormir as 9 da noite, ja que acordava as 4 e meia pra trabalhar, entao ligava sempre pra proprietaria pra reclamar que eu estava "andando" demais pela casa depois das 9. Veja bem, eu nem sequer escutava musica sem fones, mas deixar de ir no banheiro fazer xixi ou preparar um cha porque a vossa majestade pode acordar com os meus passos, ja é demais. Sem falar que se eu deixasse uma caneca pra lavar mais tarde na pia, ele ja ligava pra proprietaria falando que eu era uma porca. UMA fucking caneca.
Anyway, acho que é por causa disso que ele "adquiriu" um novo habito agradavel : tomar banho de porta aberta. E eu tendo que passar em frente ao banheiro pra ir pro meu quarto, tinha que fazer uns movimentos ninjas pra nao ter nenhuma visao do inferno. Nariz empinado como sou, nao me dei por vencida e nao liguei pra proprietaria pra reclamar. Me fiz de indiferente. No entanto, um dia, uma neta da proprietaria veio passar uns dias em Paris e ia ficar no sofa da sala do apartamento. Ela teve a infelicidade de chegar justo quando o senhorzinho tava tomando banho de porta aberta, e ligou imediatamente pra avo reclamando do homem, que recebeu um ultimato para abandonar o apartamento até o final do mês, ja que "ele nao sabia conviver com outras pessoas". Lembro de so ter pensado duas palavras : ha ha.

O cambrioleur : na vida em coloc, é comum sempre avisar quando você receber uma visita, pelo simples respeito e pra que ninguém cruze outra pessoa em casa e pense "quem raios é vc?". Logico que uma vez ou outra, você esquece.
Um dia, no apartamento em chinatown, sai linda leve e loira do meu quarto pra ir tomar banho, quando me deparo com um negão 3x4 no corredor. Lembro de ter ficado petrificada, achando que era um ladrao que invadiu o apê, e fiquei olhando em volta qual era o objeto mais pesado ou cortante que eu poderia jogar naquele armario e me arrependendo de nao ter feitos aulas de krav maga. Estranhamente, ele também me olhava meio nao entendendo o que se passava. Eis que a africana (igualmente 3x4) sai do quarto dela, e percebendo nossas caras incrédulas, se apressou em me dizer que aquele era o namorado dela, que ia passar uma semana la, e se desculpou por ter esquecido de me avisar.
Acho que nunca senti tanto alivio na minha vida.

A chef de cuisine : quando fui burguesa e morei no 16ème, dividia o apê com um rapaz. Ele era aquela tipica pessoa que nao fazia uma virgula na cozinha, e so comia coisa congelada. Um dia, preparei um risoto de champignon (tipo, cozinhando os champignons, o arroz, etc...), e como sobrou, comentei que se ele quisesse comer, poderia se servir. Ele experimentou e olha, acho que nunca recebi tantos elogios culinarios na vida. Outra vez, preparei um strogonoff quando o ex marroquino veio jantar em casa, e também ofereci pro coloc. O rapaz ficou maravilhado, dizendo que nunca tinha comido algo tao bom na vida.
Mesmo sabendo que tudo isso era so pq o paladar dele tava comprometido com tanta comida congelada, confesso que fiquei me achando "A" chef de cuisine.

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